sábado, 5 de novembro de 2011

Mestre e discípulo



- Mestre?

- Sim, Pequeno Ouriço Amedrontado?

- Porque o senhor sempre fala em forma de perguntas? É porque esqueceu as respostas?

- Faço isso para instigá-lo a buscar suas próprias respostas, Pequeno Camundongo que Teme a Chuva. Ou você já esqueceu uma das principais lições que lhe ensinei?

- O questionamento é um dos principais meios para se adquirir conhecimento. Eu lembro. E acho que essa frase só deve rimar para que o senhor lembre dela mais facilmente.

- O que seu Mestre lembra ou deixa de lembrar cabe apenas a ele questionar, Pardal Hiperativo. E você está em um estágio importante de seu aprendizado. Omnibus dubitandis, está lembrado?

- Sim, Mestre. Duvidar de tudo.

- Exatamente, Borboleta que Teme sair do Casulo. E seu Mestre está sempre certo, já esqueceu?

- Sim, eu... Espere aí.  Se o senhor me disse pra duvidar de tudo e disse também que está sempre certo, ambas as afirmações não são contraditórias?

- Exatamente, Rato Titubeante. Demorou um pouco para você enxergar o óbvio, não?

- A culpa não é minha não, Mestre. É o ar rarefeito deste local que não ajuda. Este templo é tão alto que mês passado um satélite passou por aqui e derrubou o varal de roupas. Lay Dun, o encarregado de lavar nossa roupa, ficou tão furioso que o cabelo dele até voltou a crescer, o que só o deixou mais irritado. Décadas de meditação para conseguir fazer com que o cabelo parasse de crescer e acontece isso.

- A meditação contínua e harmonicamente bem realizada também auxilia na busca da sabedoria e paz interior, lembra?

- Sim, Mestre. E haja meditação para conseguir esquecer o gosto de ovo de águia no café, almoço e jantar. E nem escovar os dentes ajuda, já que até nossa pasta de dentes é feita disso. 

- Deve-se usar aquilo que se tem, Doninha Preguiçosa. E nossa estafante, infindável, repetitiva, monótona e quase enlouquecedora rotina diária reflete os ciclos que regem o Universo, jovem. Dos elétrons orbitando o núcleo dos átomos às galáxias girando ao redor de si mesmas, tudo é cíclico, vê?

- Hmmm... Dúvida, meditação, iluminação e daí uma nova dúvida. Entendi, Mestre. É como jogar damas com o Lin: ele rouba, daí seu oponente descobre, ambos discutem, ele admite que roubou, se desculpa e daí na próxima partida tudo se repete. Cíclico.

- O noviço Lin rouba no jogo, Raposa Vacilante? Com que propósito? Ele ainda não aprendeu que o importante do jogo é a lição que se aprende ao jogá-lo e a libertação da mente das preocupações? Ele tenciona apenas jogar para vencer, o que é condenável e inútil?

- É que ele gosta de comer as peças, Mestre.

- Mas o objetivo fundamental do jogo não é esse, pupilo?

- É que ele come as peças mesmo, já que elas também são feitas de ovos de águia, Mestre.

- Ah, compreendo. E você teria outra forma de entretenimento, rapaz?

- Que eu lembre, apenas C. S. I. ...

- A famosa série de tv? Mas eu não havia proibido isso?

- Série? Ahn... Que série, Mestre? Eu falei ce, esse e i, iniciais de conhecimento, sabedoria e inteligência! He, he...

- Você acabou de inventar isso não é, discípulo?

- Assim o senhor me ofende, sabia?

- Sim. Usando uma terminologia adaptada à sua tão adorada e fútil tecnologia, a inteligência é o combustível de um carro, o conhecimento o seu motor e a sabedoria é o bom senso do motorista compreendeu, jovem?

- O senhor acabou de inventar isso não é, Mestre?

- Não ouse questionar seu mentor, Irrequieto Castor Atarefado. E já está na hora de sua meditação, lembra?

- Mas o senhor falou pra... Ah, deixa pra lá. Meditação. Pois é. Estou começando a achar que é verdade que dizem que o senhor é tão velho que sua carteira de identidade fossilizou, e que se refere aos mais jovens por estes nomes absurdos porque não lembra mais do nome deles. Me parece que vocês anciãos, depois de passarem a vida toda meditando, desistem de tentarem encontrar as respostas para suas inquietações existenciais e resolvem treinar aprendizes para que eles façam isso para vocês. O que o senhor me diz disso, Mestre?

Silêncio transcendental.

- Mestre?     

21 comentários:

  1. Jacques, tudo bem?

    Muito bom, meu amigo!

    Creio que agora o aprendiz é quem fará todas as perguntas..., não é mesmo?

    Que capacidade tu tens de conversar contigo mesmo, tá virando especialista em diálogos, Jacques!
    Um diferencial teu, pensa nisso.
    No meu caso, evito um pouco os diálogos quando faço texto sem parceria, porque acabo brigando comigo mesma, aí já viu, não é? Quem tem a razão?
    ... já está na hora da meditação, lembra? rsrs

    Abração e ótimo fim de semana!

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  2. Salve, Pequeno Gafanhoto Colorado!

    Os velhos mestres zen são precursores da psicanálise, naquela prática de responder as perguntas com outra pergunta.

    E também outra coqueluche dos tempos modernos: meditação. Eu acho legal, sabe? Respirar corretamente, pensamento bom, positivo...mas daí a comprar a ideia de que com a meditação TODOS os meus problemas serão resolvidos...desculpa aí, Mestre Splinter, bora matar a fome com uma pizza! Eu quero a minha tradicional de mussarela, por favor!

    - Mestre, para quem se alimenta apenas com luz e grãos contados de arroz, o senhor até que está bem gordinho...

    - Ouça, pequena Lebre Preguiçosa que deixou a Tartaruga vencer, este koan: um homem queria atingir a purificação e recorreu ao jejum. Seu vizinho, preocupado com a saúde do amigo, ofereceu para ele sua comida. O homem agradeceu, mas recusou. Com 30 dias estava o homem cada vez mais gordo enquanto o vizinho estava cada vez mais magro.

    (silêncio solene e transcendental)

    - Hã...mestre? E aí?

    - Ora, pequeno Bicho da Seda de cativeiro, medite, medite que encontrarás a resposta. Agora dá licença e me deixa meditar com meu IPOD em paz!

    Abraço, Jacques!

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  3. Jacques, me chamou bastante atençã, os nomes que o mestre sempre dava a cada questionamento do aprendiz, um verdadeiro cardápio de nomes. Concordo com a Cissa, você tem um domínio e uma facilidade em estabelecer esses diálogos, que realmente impressiona. O resultado no final é a forma como isso consegue manter o leitor preso ao texto, diante dessa sua capacidade no desenvolvimento desses diálogos. É coisa de muito talento mesmo! Parabéns, meu amigo.

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  4. Jacque...

    Você conseguiu prender minha atenção deste o primeiro parágrafo.
    Li seu texto sorrindo!!

    Parabéns e semana de paz a vc!!

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  5. oi Jacques

    impressionante sua forma de escrever, como conduz habilmente e sutilmente nosso raciocínio.

    Diálogo escrito por um é difícil dar os contrapontos necessários e você o faz tão facilmente e encantadoramente.

    A conclusão deste texto é belíssima. Onde está a sabedoria? No que ensina ou no que aprende?

    Um beijo e boa semana!

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  6. Jacques

    a beleza de um texto reside nisto, ele não morre com o autor, é recriado e reescrito por cada leitor ao interpreta-lo.

    O conceito de cíclico que você deu é perfeito, pois no universo tudo o é. Assim como é verdade que a sabedoria reside também na aprendizagem, não há um ponto final para ela.

    Obrigada!

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  7. Jacques!
    Vim para te agradecer a constância por lá! rsrs
    E também, talvez, ainda não é certo, eu vá passar por Pelotas na sexta ou sábado, mas deve ser difícil de ver, ou não, não sei se vai dar de minha parte também. Algo tipo, 5 minutos para tirar uma foto? rsrsr
    Acho que "viajei" aqui! rsrsr
    Combinamos, se der!
    Abraçãoooo e ótima semana! :)

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  8. Que bom o seu texto, Jacques.
    Como sempre, sacada inteligente.
    E como é difícil enfrentar essa inquietação de saber as coisas.
    Combina bem o castelo lá no alto com a arte da sabedoria.
    Alturas que não se bastam, pois ainda buscam-se a transcendência:
    - “Não ouse questionar seu mentor, irrequieto Castor Atarefado. E já está na hora de sua meditação, lembra?”
    Enfim, tudo é uma busca, tanto lá em cima, quanto aqui embaixo.
    Bom mesmo era jogar bolinha de gude, mas o jogo vai ficando mais complexo quando descobrimos que lá no alto existem os castelos e o jogo passa a não ser mais o da bolinha de gude, ou do simples joguinho de damas, mas o intrincado jogo de xadrez.
    Às vezes causa arrepios só de pensar neles, pois além de aprender a jogá-los, existe a preocupação de ser mestre do jogo e depois já não basta mais ser mestre do xadrez, pois há um grau acima, o de mestre dos mestres. rs
    Ainda continuo degustando o joguinho de damas, procurando descobrir nele a melhor forma de jogar o jogo da vida. Na simplicidade também se aprende e se ensina, creio. E me parece que lá em cima, no castelo, o mestre, embora rebuscado em seu conhecimento, ensina a simplicidade somada à coerência de nossos atos. E o seu discípulo, aprendiz, porém muito astuto, questiona o conhecimento de seu mestre.
    Isto é apenas uma reflexão que sua crônica me leva a refletir.

    Um abraço, meu caro Jacques. Boa semana para você.

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  9. Espetacular seu texto, Jacques. Gosto da forma que descreve os dialogo consigo mesmo, principalmente dessa frase."O questionamento é um dos principais meios para se adquirir conhecimento". Você é um grande sábio, mestre das palavras. Beijo e ótima semana.

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  10. Parece-me que o discípulo já está totalmente preparado para ser mestre. Chegou ao esperado. Não questionou os nomes pelos quais foi chamado (você foi cômico em escolhê-los) e concluiu com sábio questionamento (rss).
    Como sempre, você foi perfeito!

    Bjs.

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  11. Jacques!
    Posso te pedir um favor?

    Quando puderes, passar neste link:
    http://cafequenteesherlock.blogspot.com/2011/11/em-cartaz-vida-escolhas-atitudes.html

    Uma amiga, muito amiga aqui da blogosfera, mas que estava afastada, retornou com tudo e uma homenagem para mim!
    Se puderes passar por lá!
    Beijos e obrigada!

    PS.: Se não der, não fico braba rsrs

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  12. Olá, Jacques!
    Este é mais um conto satírico magnífico.
    O diálogo é de uma sabedoria ímpar.
    O interessante também é que, mesmo indagando menos, o Discípulo questiona mais que o Mestre. Lembra um pouco o diálogo entre pai e filho.
    O recurso do epíteto em cada arguição é mesmo para desmoralizar o interlocutor juntamente com sua premissa.

    Sou fã de sua narrativa e de seu fino humor. A gramática também é perfeita.

    Parabéns pela sagacidade e obrigado pelo comentário inteligente no meu blog!

    Abraços!

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  13. Obrigada pelas palavras que deixou no blog da Emiliana. Foi gentil e me honrou.

    Bjs.

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  14. Grande Jaques

    Que dialogo trancendental, me lembrou o guru, um amigo meu na aula de tai chi que ficava viajando em pensamentos filosoficos. fiquei me perguntando porque não vima seu blog antes, tudo aqui é tão legal e tem vários membros da minha blogosfera aqui. Seja bm vindo ao grupo no facebook, adicione todos os amigos blogueiros que quiser, isso vai ajudar a divulgar o trabalho de vários colegas e seu tambem !

    Um abraço e volte sempre...o Crônicas precisa de gente que comenta como vc !

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  15. hahahha..."doninha preguiçosa"heheheh


    e a alusão ao CSI-...divinal....fez-se sil<~encio...transcendental...

    ...e o jovem aprendiz...medita...no meu quintal!
    Adorável

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  16. jacques, a lucidez da tua escrita é cativante. há um pouco de tanta coisa neste teu post! dos sofistas, aos céticos, passando sócrates e a sua metacognição, chegando aos renascentistas e ao ideal de superação dos mestres. o antípoda, afinal, do conformismo capitalista das sociedades modernas.
    cada vez mais o saber é mera convenção académica, lamentavelmente...
    um abraço!

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  17. Medite, Pequeno Literato Sagaz, medite!!!!

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  18. Ó, pequena coruja maiêuta, isso é uma aula e tanto, viu! hahahaha!
    Que maravilha, Jacques! Um exercício que eu adoro só que sou que nem coruja surda e muda. Não falo , mas presto uma atenção danada!

    Grande abraço. paz e bem.

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  19. MUITO BOA

    Faz todo sentido a fala no final... agora, uma dúvida, o mestre morreu?

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  20. Jacques,

    Fiz aquele blog mas só postei uma vez... era pra ser meu e de mais duas amigas mas nunca deu certo! Nada interessante!

    Realmente, não tem resposta para a pergunta do Pequeno Ouriço Amedrontado, aliás, concordo com ele que o Mestre é tão velho que não consegue lembrar de seu nome e então arruma mil animais com características humanas (Prosopopéia) para se comunicar com seu discípulo.
    Achei de muito bom humor!
    E obrigada pela indicação, tendo tempo dou uma olhada sim.

    Até!

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  21. O discípulo superou o mestre.
    Mas ele também não sabe o nome do véio, pois só o chamou de mestre - rsss.

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