quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Peregrinações do cotidiano




6:27
Chego na fila para renovar minha carteira do INSS (Instituto de Nenhuma Segurança Social). Deveria haver um modo mais fácil de resolver isso.

6:29
Passa por mim um ser de aparência jovem, aparência soturna, olheiras profundas, capa esvoaçante e visível medo dos primeiros raios de sol que surgem no horizonte. Eu já estava achando que era um vampiro quando o senhor à minha frente sussurra a palavra “Emo!”, o que faz meu sangue gelar.

Você nunca sabe quais figuras estranhas podem aparecer na sua frente neste horário de fim de madrugada.

Conheci minha ex esposa assim.
     
7:02
O celular de um rapaz toca Ferrassamba no último volume (no caso, produzindo um som mais alto que um estádio de futebol lotado de fãs histéricas do Justin Beaver sendo explodido por uma explosão nuclear), dando um susto nos demais presentes. Como se alguém ali precisasse de mais um susto.

7:11
O celular do mesmo rapaz apita novamente, só que tocando Apocalipso. Eu me irrito e pergunto porque ele não toca Molejóia, logo de uma vez. Ele responde que este grupo não está disponível para download, ainda. Depois de estremecer de medo e apreensão, percebo que o que odeio mais do que falta de educação é sarcasmo desperdiçado.

9:27
Após o celular do rapaz tocar mais algumas vezes, o pessoal da fila se irrita e o joga na caçamba de um caminhão de lixo que passava. Segundos depois, o caminhão retorna e os garis devolvem o rapaz (que estava parecendo um alien do desenho do Ten 10), alegando que não recolhiam lixo orgânico. O rapaz nem percebeu o que se passou, pois estava discutindo com a namorada pelo telefone sobre qual figura usariam de fundo de tela em seu novo computador.

É uma época estranha essa em que vivemos.

12:54
Estava começando a me perguntar que gosto teria os azulejos da parede como recheio de sanduíche.  Percebi que estava realmente faminto quando vi que o sanduíche que eu imaginava era um Big Tasteless do Fast Donald’s.

13:02
Entediadas, algumas pessoas da fila – não me perguntem como – conseguiram se organizar e resolvem tocar “As Quatro Estações”, de Vivaldi, utilizando como instrumento musical as diferentes tonalidades do ronco de seus estômagos. Filmaram o inusitado concerto, intitularam o vídeo de “Adorável Simfomia” e o postaram no Youtube.

Ao que parece, a única coisa maior do que a tenacidade do brasileiro é sua imaginação.

13: 34
Consigo fazer meu cadastro. A moça olha pra minha foto e tenta – inutilmente – disfarçar uma risada e leva minha carteirinha para mostrar ao seu chefe. Ele ri tanto que quase engole a dentadura. Estranho isso, considerando que ele não aparentava usar dentadura. Estou cansado demais para me irritar com eles. Os safados devem ter tirado esta técnica de desencorajamento de alguma prisão turca. E, pensando bem, aquela foto merece ser esculachada.

14:23
Percebo que os computadores daqui não são muito novos quando uma senhora sentada ao meu lado me contou que no dia anterior o sistema havia saído do ar porque algum desavisado tentou ler seus e-mails enquanto o “Bloco de Notas” ainda estava aberto.

Percebo como a civilização vive sob condições realmente frágeis.

15:35
Penso em perguntar a alguém se não seria melhor substituírem a ordem das letras na placa onde está escrito “PRIORIDADE” para “PIOR IDADE”, já que o descaso com as pessoas mais velhas aqui é algo corriqueiro, mas temo que meu – desta vez justificável – sarcasmo seria novamente desperdiçado.

16:58
A consistência adamantina destas cadeiras me faz lembrar um documentário que vi certa vez sobre os babuínos e como eles não possuem nenhum problema em dormir sentados, devido às calosidades que eles possuem na região das nádegas. Aqueles animais tem de lidar com leopardos, leões, outros babuínos, turistas pentelhos e pesquisadores insuportáveis mas, de repente, me deu uma inveja deles. 

I7:44
Quando a intensa meditação forçada me deixou próximo de descobrir a fórmula que originou o Universo (aquela do Stephen Hawking), sou finalmente chamado. Ao me levantar, o barulho feito pelo estalar de meus ossos acorda a senhora que estava pegando sono ao meu lado, que me agradece por isso.

É estranho realizar uma boa ação involuntariamente e sob condições tão adversas.

17:57
Consigo renovar minha carteira e a funcionária me conta que eu poderia te feito isso pela internet. Procuro em meu repertório de palavrões algum que seja adequado à situação, sem sucesso.

20:39
Vejo no jornal que o vídeo “Adorável Sinfomia”, depois de alguns milhões de visualizações na rede, será transformado em musical da Broadway.

Realmente, é uma época estranha esta em que vivemos.

26 comentários:

  1. Somente as pessoas extremamente inteligentes conseguem ser sarcásticas.
    O que quer dizer que muita ironia fina é desperdiçada... pérolas aos porcos, não tá escrito assim em algum lugar? Rs...
    Bom texto!
    Bjs

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  2. Muito legal. Já penei em muita fila na minha vida, o serviço público esta cada vez pior.

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  3. Dani,
    Ser sarcástico é fácil, difícil é fazer isso sem ofender ninguém involuntariamente.
    Abraço.

    Fábio,
    Por incrível que pareça, o serviço público ainda vai piorar muito.
    Valeu.

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  4. Jacque..

    Fico encantada com seu humor inteligente.
    Sempre na medida certa. Amei..
    Outro dia até que foi bom ficar na espera durante duas horas pra consertar o celulart ( que não foi consertado, disseram que eu destravei o lacre ,..eu nem sabia que celular tibha esse treco..
    O bom ´que deliciei com a leitura do livro do meu
    amigo Rodolfo..
    Ta vendo? sempre encontro o lado bom da vida rsrsr

    bj

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  5. Valeu, Ma.
    Acho que tentar ver o lado bom nas coisas aparentemente ruins é tão difícil quanto criar humor.
    Se bem que eu não o crio, apenas o encontro.
    Abraço.

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  6. Oi Jacques,
    há pouco tive que renovar minha carteira de motorista, o que era para ser tão fácil..., virou uma confusão danada. E ao colocar a tal da ponta do dedo no nariz com os olhos fechados, meu amigo... parece que bebi uma garrafa inteira de J.P.Chennet, não sei o que aconteceu, mas não acertei a "Coisa", mas a tal médica, nem estava olhando! rsrs

    Concordo contigo, em algumas situações também tenho inveja dos babuínos, mas também da Carla Perez...
    Ótimo texto,bem bolado.
    Abraços.

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  7. Valeu, Ana.
    E não tenha inveja de quem falou em rede nacional "i de iscola", que não vale a pena.
    Quando puderes, passe lá no Fantástico Cenário e leia os Microcontos do Ochôa que ficaram muito bons.
    Abração.

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  8. Aauhuahuhauha... cara, demais! Fiquei penalizado por todo esse sofrimento. kkkk

    Morri de rir com o carinha do celular e com a "adorável sinfomia", hehehe, melhor que isso, só acordar a velhinha com o estalar dos ossos!!!

    Auhauhauha, demais, Jacques. Senso de sarcasmo perfeito!

    Abrs

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  9. Jacques, me permita confessar aqui, eu leio seus textos rindo, embora o amigo não escreva nenhum texto com piadas de humor, o que me faz ri, é a forma bem-humorada como se comporta seus diálogos e narrativas. Admiro de verdade o seu trabalho a frente desse blog. Falo de verdade, com toda verdade da alma. Um grande abraço.

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  10. Bom demais, Jacques. Bem retratado o retrato da vida. E quanta coisa existe por aí que não é dada a publicidade devida. E quanta publicidade faz tanta coisa virar mania. Alguém fez uma critica ao celular dizendo que quando marca um encontro com as pessoas para um bate-papo, a primeira coisa que vê quando chega são elas grudadas aos celulares. No fim continua a solidão. rs
    Um abraço.

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  11. Não há como não rir, ao ler seus textos. A crítica é bem fundamentada e você coloca nela um humor irresistível, que me faz bem. Aliás, seu estalar de ossos foi a boa ação que praticou nessa harmoniosa fila, da qual ainda resultou uma bela sinfonia.
    Bjs.

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  12. "Deveria haver um modo mais fácil de resolver isso." Mas nunca há, Jacques, quando se trata de alguma instituição governamental. Eu tenho inveja é dos DESPACHANTES, pois acho incrível o modo como eles se movimentam no DETRAN, por exemplo.

    Aqui na Bahia os cartórios ainda são do governo. O único estado que mantém cartórios assim.* Imagine a aventura que é autenticar uma xerox da identidade porque uma faculdade exige tal condição para matricular o pobre coitado que se matou no funil do vestibular!

    - Pó, véi, é mais fácil fechar a prova de Física do que tirar uma xerox autenticada, rapaz...

    E "Adorável Sinfonia" vai cair no gosto popular de vez quando for eleito pelo Faustão como "o melhor do ano".

    - Toda a criatividade do brasileiro, galera!

    Abraço!

    *A farra das filas e venda de lugares acabou: vão privatizar os cartórios daqui.

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  13. Marcel,
    O Cara do celular é o retrato de boa parte da juventude que acha que terá um troço se sair de casa sem o celular.
    Abraço.

    Paulo Cesar,
    Eu sempre vou tentar colocar um fundo sério nos meus textos, e se você gosta desse tipo de humor, eu recomendo os livros do Woody Allen e do L. F. Veríssimo, que são minhas maiores inspirações.
    Grande abraço.

    Evaldo,
    É uma grande pena que muitas pessoas ainda não saibam lidar coerentemente com a questão da tecnologia, colocando-a a frente das pessoas, quando deveria ser o inverso.
    Valeu.

    Marilene,
    Sempre haverá lugar para boas ações, não importando a situação.
    Abraço.

    Jaime,
    Pior do que as filas, só o descaso do poder público e o abusa dos cartórios, que cobram o quanto querem pelos documentos.
    E é "Adorável Sinfomia", com "m".
    E em homenagem ao divertido apelido que usam lá no teu site, dá uma lida aqui:
    http://fantasticocenario.com.br/2010/11/08/groo-%E2%80%93-o-mais-engracado-dos-barbaros/
    Abração.

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  14. organização social ou paradigma da barbárie civilizacional?
    abraço!
    p.s. a imagem do fast donald's é admirável :); "realmente é uma época estranha esta em que vivemos."

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  15. ótimo!!! além da ironia nas observações ser muito bacana, eu gosto pra caramba de como vocÊ dividiu as observações pelo tempo de espera. Apesar do personagem ser praticamente um ponto fixo, pela lentidão da fila( e qualquer um se identifica com isso)há um certo movimento expresso nessa demarcação do tempo e nos pensamentos do personagem. parabéns!
    as coisas estão meio corridas, mas passo por aqui pra ler sempre que dá.
    abraço!

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  16. ótimo!!! além da ironia nas observações ser muito bacana, eu gosto pra caramba de como vocÊ dividiu as observações pelo tempo de espera. Apesar do personagem ser praticamente um ponto fixo, pela lentidão da fila( e qualquer um se identifica com isso)há um certo movimento expresso nessa demarcação do tempo e nos pensamentos do personagem. parabéns!
    as coisas estão meio corridas, mas passo por aqui pra ler sempre que dá.
    abraço!

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  17. Jorge,
    Realmente, um mundo onde, cada vez mais ocorre a uniformização estética e comportamental através da propaganda é um mundo estranho para se viver.
    Abraço.

    Vinícius,
    Vou tentar sempre mudar o formato dos textos, mas sempre visando o humor.
    Apareça quando puder.
    Abraços.

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  18. Jacques, obrigado pelo link, o texto do meu grande ídolo (hahaha) Groo está muito bom!

    Deixei um comentário por lá. Terei errado?

    Abs!

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  19. Jacques, isso é que é um diário, pois durou um dia. Seu relato retrata bem nosso cotidiano perante a burrocracia (burrocracia: S.F. burro no poder). Já peguei tanta fila que pensei em mudar meu nome para Filomeno e me mudar para Filadélfia ou trabalhar numa filarmônica.
    Só em ler, me deu canseira e impaciência esse atendimento. O legal é que você tem o dom de transformar isso em algo positivo, que é o humor.

    Parabéns pela criatividade!

    Obrigado pela visita e comentário gentil no meu link!

    Abraços do novo amigo!

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  20. Jacques, voltei para lhe dizer que tenho um haicai para fila:

    Cena cotidiana:
    Aonde quer que você vá
    Há uma fila indiana.

    Abraços!

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  21. Muito obrigado, Bento.
    Infelizmente, s filas neste país são a regra e não a exceção.
    Belo haicai este; talvez algum dia eu enverede pela poesia.
    Abraço.

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  22. Que dia, hein, Jacques? Puta merda! Acho que eu não sobreviveria a um desses...

    Brincadeiras à parte, adorei! De fato vivemos em uma época estranha e, talvez por isso tenhamos que nos deparar com tanta estranheza de atitudes mundo a fora...

    Até!

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  23. Ahahahahahahahahahahaha... vir aqui é sempre uma verdadeira comédia! Muuuuito bom, sarcástico e espirituoso! Assim como o PC, eu leio o texto rindo... agora, fiquei curiosa com o som da "Simfomia"... :-D

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  24. Olá!

    Gostei do tom do texto e da forma como você contou a história, principalmente do final.

    Att,
    Vanessa Sagossi
    comentandoofilme.blogspot.com

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  25. Oi Jacques!
    Bom eu também não conheço muitos filmes franceses, mas fiz uma grande lista de clássicos P/B para ver e sei que tem muito filme francês por lá que despertou minha atenção. Aliás, o cinema europeu no geral é incrível..eu estou adorando o cinema sueco.
    Certamente esses filmes clássicos e antigos influenciaram mestres de hoje, como o Burton que vc citou..aliás o Burton fez um filme totalmente em P/B chamado Ed Wood que conta a história de um popular diretor trash antigo.

    AHSHASHAHAHS mew, eu ri muito da descriação do emo...sério, eles dão mais medo do que vmapiros e pseudo góticos...
    Pessoas sem noção não deveriam ter celulares barulhentos...e se o som poderia ser comparada á fãs do Bieber...tenho medo. E pô! O cara ainda é burro e não entende ironia...
    Não tinha uma foto melhor não? Assim vc não teria sido motivo de piada dos funcionários..cuidado! Meu amigo trampava em coisa de xerox e colocou no facebook o rg de uma tia freira u.u
    Babúinos e necessidade urgente de sentar....
    E o descaso que nos tratam nesses lugares é fenomenal...
    Enfim...seu humor é demais...parabéns! Isso é um talento raro.

    bjs

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  26. Barbara,
    O "absurdo" de hoje é o "bons tempos" de amanhã.
    Abraço.

    Bel,
    O provável som estapafúrdio da Simfomia eu deixo a critério do leitor.
    Valeu.

    Vanessa,
    Tentarei sempre criar histórias diferentes e inusitadas.
    Até mais.

    Tsu,
    O Ed Wood dirigiu o Plano 9 de Outro Espaço, considerado o pior filme de todos os tempos (que infelizmente eu não vi).
    E a falta de educação e noção está se tornando cada vez mais comum no nosso dia a dia.
    E TODO MUNDO fica mal na primeira foto 3x4 da carteira de identidade; é uma lei universal imutável.
    Abraços.

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